06 Março 2023
Simplesmente “irmão Enzo”, como Enzo Bianchi deseja ser chamado. Na véspera de seus 80 anos de idade, ele está se preparando para se mudar para a “Casa della Madia”, em Albiano, uma pequena cidade a cerca de 50 quilômetros de Turim, na Itália, para viver em fraternidade com poucas pessoas, um lugar de encontro, de sororidade, uma mesa preparada para a partilha e a troca de palavras, de afetos e de esperança.
A reportagem é de Chiara Genisio, publicada por Vita Pastorale, 06-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nessa casa também haverá uma horta, tal como agora na casa onde ele vive, nas encostas da colina de Turim. Aqui, ele cuida com paixão e dedicação, todos os dias, de um pequeno terreno, cujos frutos partilha com seus vizinhos. Ele plantou sementes recolhidas nas muitas viagens que fez, ao longo dos anos, por todo o mundo.
Sua paixão pela horta, que nunca o abandonou, levou-o a escrever, em seu último livro “Cosa c’è di là. Inno alla vita” (Ed. Il Mulino), que, quando comprou um “pedacinho de terra para ser enterrado” em Monferrato, em sua terra natal de Castel Boglione, ele expressou a vontade de que lá sejam semeados alecrim, louro, manjerona, as plantas que ele ama muito.
Capa do livro de Enzo Bianchi. (Foto: divulgação)
Esse último livro dele é um grande hino à vida e ao amor. Muito mais do que um testamento espiritual. Como ele mesmo escreve, a razão desse texto é “não remover, mas viver aquilo que faz parte da vida e tentar entrever, mantendo-se firme, aquilo que é invisível, aquilo que há no além, escutando as palavras cristãs”.
O que significa o amor para o irmão Enzo?
Na minha experiência, foi sobretudo um amor passivo, um amor recebido. Não é tanto um sentimento do qual eu me sinta um sujeito. Na minha vida, eu sempre recebi muito amor. Vi-me sozinho quando a minha mãe morreu quando eu tinha oito anos de idade, apenas com o meu pai, sem irmãos nem parentes, e duas mulheres, com quem não tínhamos nenhum parentesco. Elas simplesmente estavam no vilarejo, cuidaram de mim, fizeram mais do que uma mãe por mim. Ajudaram-me a crescer, apoiaram-me nos meus estudos até à universidade. Além disso, sempre vivi rodeado de pessoas que me amavam.
Sempre fui acompanhado pelo amor, e isso me fez sentir que era amado. E, no fundo, isso significa que eu era amado por Deus. Eu sentia esse grande amor por Jesus Cristo, mais do que por Deus, que sempre foi uma espécie de presença constante na minha vida. Companhia inseparável, referência essencial. Todas as vezes que ia ler os Evangelhos, o que sempre me impressionava era sobretudo essa capacidade que Jesus tinha de amar até ao fim, até ao extremo. Para além do resultado. Para além de ser um homem traído, rejeitado, até condenado. Mas ele soube viver isso, e eu sempre percebi que a ressurreição, essa vitória sobre a morte, era uma vitória não tanto dele, mas daquele que viveu o amor, ou do amor sobre a morte. Isso sempre me fez estar atento e perceber que, se havia algo que me dava sentido, era o amor.
E foi esse sentimento de amor que o levou a fundar a Comunidade de Bose em 1965?
Sim. Foi ele que me levou desde muito jovem a iniciar uma vida comunitária que me parecia ser o lugar do amor mais gratuito, mais intenso possível, sobretudo uma comunidade monástica. E é por isso que eu sempre quis uma comunidade que não estivesse separada do mundo, das pessoas, mas que tivesse uma comunicação especial e constante com os outros: os pobres, mas também com aqueles que não são cristãos, que não são católicos, religiosos. Em suma, a humanidade. Esse sempre foi o fio dourado para mim, aquele que dá unidade a um dia após o outro. As perguntas que eu sempre me faço são: consegui amar alguém hoje? Consegui levar um pouco de confiança? Consegui, no amor, tirar um pouco de sofrimento dos outros? Esse é o único exame de consciência que eu faço à noite, e são as únicas perguntas que me convenceriam de que eu vivi bem ou de que eu vivi mal.
Você sempre fez isso ou é uma atenção que teve apenas nos últimos anos?
Eu sempre fiz. Certamente, agora que estou idoso, a dívida e a gratidão à minha mãe e às duas mulheres que me ajudaram a crescer vêm mais à minha mente.
Você escreveu muito. Existem autores que mais o inspiraram?
Bonhoeffer ajudou-me na minha fé e na minha postura de fiel e cristão. E não há mais ninguém que eu possa dizer que representou tanto para mim. Minha formação é sem dúvida clássica com o estudo dos Padres da Igreja. Aos 13 anos de idade, comecei a ler São Basílio. Haviam me presenteado as suas regras impressas em Grottaferrata. Eu ainda guardo o livro. Um Padre da Igreja extraordinário, outro que sinto como um companheiro inseparável na minha vida.
Talvez você também tenha sido um inspirador para os outros...
(Sorri). Eu não saberia dizer...
Você planeja escrever um novo livro?
Gostaria ainda de escrever, e gostaria muito de escrever – ainda que hesite – alguma coisa sobre Jesus. Há anos faço anotações e escrevo. Não se trataria da história, mas de chegar ao núcleo incandescente do que há realmente de Jesus. Não palavras de vida, mas Jesus que é vida.
Você afirmou que, olhando para seu passado hoje, talvez trabalharia menos e contemplaria mais. O que isso quer dizer?
Construir uma comunidade requer muita energia. Às vezes, eu me pergunto como consegui, porque, durante meu priorado, conseguimos ser mais de 90 pessoas em Bose. Isso exigiu muitas energias de mim, dia e noite. Pela comunidade e pelas pessoas que sempre acompanhei individualmente. A situação de pobreza em que vivíamos me levou a trabalhar muito, tinha que escrever muito em jornais, livros, revistas. Se eu voltasse atrás, certamente trabalharia menos. Acho que dedicaria mais tempo justamente a contemplar, a ficar em paz, a não ter sempre que cumprir prazos. A única razão pela qual pedi a renúncia em 2017 – que poderia não ter pedido e continuado – foi justamente o desejo de ter um tempo, antes de morrer, de grande paz e de não atividade. Tanto que eu morava em uma casa alugada na costa da Ligúria, mais do que em Bose. Não tinha nenhum compromisso e podia ficar nessa casa isolada à beira-mar de manhã à noite, onde podia ler, pensar, ouvir música, passear, olhar o mar, mesmo sem encontrar muita gente. Era um grande desejo. Trabalhei muito na minha vida porque tive que lidar com as coisas materiais, que eu não desprezava, não fui um prior que orientava intelectualmente a comunidade. Eu cultivava uma horta, interessava-me pela cerâmica, pela carpintaria. Estive presente em todas as atividades realizadas pela comunidade, acompanhei os irmãos. Isso me custou um sacrifício e uma carga de trabalho da qual sinto o peso.
Você sente falta de Bose?
Sinto falta sobretudo de duas coisas em Bose. A vida fraterna, porque voltei a viver em uma solidão que havia vivido no início, quando era quase um eremita. Isso havia me temperado, mas, aos 78 anos, não ter mais uma comunidade e ter que morar sozinho e pensar em tudo foi muito difícil, cansativo e fatigante. E também sinto falta da oração comum; precisamos da oração com os outros depois de tantos anos de oração comum. Eu sinto falta dessas duas coisas. Os hóspedes também vêm aqui me visitar e nem sempre preciso estar na crista da onda.
Em muito pouco tempo, você se mudará para a “Casa della Madia”: isso significa que dará origem a uma nova comunidade?
A “Casa della Madia” não será uma nova Bose, porque a comunidade ecumênica de Bose é como um filho: uma vez feito, não pode ser refeito. Nem estará em concorrência com Bose. Trata-se simplesmente de continuar a vida feita de fraternidade, de acolhida de todos os crentes e não crentes, um lugar onde nos encontramos, onde debatemos com liberdade. Portanto, haverá uma acolhida de pessoas que querem esse debate. Não seremos de modo algum uma nova Bose, mas algo muito simples, que me permita continuar sendo aquilo que eu fui toda a minha vida: um monge que acolhe os outros, que não é um eremita, porque não é a sua vocação, e que morre como viveu.
Então, não se pode dizer que você é o fundador de uma nova comunidade?
Não, absolutamente não.
Do que o irmão Enzo tem medo?
Tenho muito medo do sofrimento físico e da doença mental de velho: Alzheimer e demência senil. Porque, quando tive que lidar com essas doenças, eu vi como é difícil viver por causa delas e para quem as acompanha. Por isso, gostaria que isso fosse poupado de mim. Espero que o Senhor não me faça passar por esse caminho. Espero que a dor seja aliviada em mim, mesmo ao custo de abreviar minha vida (escrevi isso no meu testamento). A Igreja também permite os cuidados paliativos. Há um limite até onde podemos suportar a dor.
Você sofreu a dor no coração ao deixar a Comunidade de Bose. Em seu último livro, você escreve que “sempre se sentiu em uma caravana e nunca alguém perdido no deserto. Nem mesmo o exílio me desestabilizou em relação às comunicações que me inspiraram durante a vida inteira”.
Esse sofrimento existe. Não despertou em mim rancor, amargura, não abalou a minha fé, não me abalou no amor, embora eu não consiga entender o enigma de pessoas muito próximas a mim que consumaram uma verdadeira traição contra mim sem motivo, porque havia um acordo. Exceto por uma duplicidade mantida por anos, havia quase uma amizade, além de uma fraternidade. Estes são os últimos anos da minha vida, e eu faço as contas de que o que importa diante dos outros e do Senhor é aquilo que eu fiz e, portanto, não posso de modo algum negar aquilo que fiz.
Não mudaria nada?
Não mudaria nada.
Existe um sonho no coração do irmão Enzo?
Meu sonho é que a Igreja pense um pouco menos em si mesma e mais em Jesus Cristo. Parece-me que a Igreja hoje é muito narcisista, centrada demais em si mesma, interessada demais em si mesma. E continua falando de si mesma. Em vez disso, é hora de pensar na centralidade de Jesus Cristo. Nesse sentido, Ratzinger tem algo a nos dizer.
Quem pode começar essa renovação?
Ela deve começar a partir de nós, porque nunca se viu uma instituição reformar a si mesma.
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Simplesmente “irmão Enzo”. Entrevista com Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU